Um aventureiro em busca de reconexão em uma cidade sem fim. Assim começa Blame!, o primeiro mangá de Tsutomu Nihei, publicado originalmente entre 1997 e 2003 na Monthly Afternoon pela Kodansha, no Japão, e compilado em 10 volumes (tankōbon). Publicado pela primeira vez no Brasil pela Editora JBC de 2016 a 2018 e reimpresso agora em 2025.

Blame! já deixa claro o gênero ficção científica de começo. A primeira página começa com os dizeres: “Talvez na Terra. Talvez no Futuro.” Já no sumário está escrito: “Começa a missão do aventureiro Killy.” É um mangá quase sem falas na maior parte do tempo. A obra é um desfile/ensaio de arquitetura e engenharia. O cenário em alguns momentos pode ser claustrofóbico e logo em seguida gigantesco! Esses momentos de “contemplação” são alternados com momentos de ação, muito violentos. Esses momentos de ação normalmente envolvem a arma carregada pelo protagonista. Sem nenhuma explicação no começo, mas que ao longo dos primeiros volumes passa a ser identificada pelos inimigos como sendo um dispositivo de disparo de radiação gravitacional. Capaz de destruir tudo o que esteja em sua trajetória de disparo.
Inclusive essa arma, ou melhor, o som de seu disparo é que dá nome ao mangá. Apesar de na grafia ocidental ter ficado como Blame!, o que poderia ser confundido com a palavra blame, que em inglês significa culpa, no original é escrito como Buramu! (ブラム!), e deve ser lido como Blam!, uma onomatopéia para o som de disparo de uma arma.
Uma jornada
Blame! mostra a jornada de Killy, um aventureiro solitário, em busca de humanos que ainda tenham o gene-modem, o que seria necessário para se conectar na NetSphere (Em um momento é mencionado internet. Teria sido um erro de tradução?). E é essa jornada que prende o leitor. A curiosidade do que está por vir durante a exploração da cidade/megaestrutura. Porque o protagonista não gera simpatia. Apesar de o motivo para seu comportamento ser parcialmente explicado nos primeiros volumes.
A trama se passa dentro de uma cidade tão gigantesca que forma uma megaestrutura. Uma construção onde, ao menos incialmente, não se sabe onde termina. Na jornada através dessa estrutura, Killy encontra raros humanos, além de ciborgues e seres sintéticos que existem com o objetivo de eliminar humanos.
Os humanos que Killy encontra pelo caminho estão isolados, sem nenhum contato com outros grupos de humanos e sem informação a respeito da cidade/megaestrutura onde se encontram.
Essa megaestrutura permanece em construção contínua através de seres chamados construtores. Robôs gigantescos que continuam a construção, expansão e remodelação da cidade, ignorando os humanos que vivem nela.
Outros robôs, chamados de varredores, têm o objetivo de caçar e eliminar os humanos.
Uma aventura visual
Blame! é principalmente uma aventura visual, muito visual! A arte arquitetônica de Nihei dá ênfase na cidade/megaestrutura. Com aspecto de labirintos complexos e em constante expansão, o que reforça a sensação de desorientação e claustrofobia para os personagens e leitores. Tudo isso em uma escala brutal, transmitindo a sensação de que os personagens são minúsculos em um ambiente dominado por tecnologia e grandiosidade. Nihei utiliza a arquitetura de forma a contar a história, fazendo com que o cenário guie a narrativa e convide o leitor a explorar o mundo junto com o protagonista.


Conexão
A conexão, ou a falta de, é tópico central em Blame! Os humanos estão desconectados entre si e também desconectados da cidade. A jornada de Killy é justamente para encontrar algum humano que ainda tenha o gene-modem, para que seja possível se conectar com a NetSphere, e então com a cidade. Nesse sentido, Blame! mostra similaridade com Death Stranding, onde um protagonista solitário explora um mundo vasto na tentativa de reconectar os seres humanos. Poderia-se dizer também que é um Matrix as avessas, já que neste, os protagonistas lutam para se desconectar.
Referências/similaridades com outras obras
Além do aspecto da conexão, a vastidão do cenário, e a solidão do protagonista que o percorre, encontra similaridades em obras como o filme Stalker, de Andrei Tarkovsky (1979). Bem como em jogos como NaissanceE (Limasse Five, 2014) e Metal Garden (Tinerasoft, 2025).
É possível também perceber referências a Alien – O Oitavo Passageiro, Dragon Ball e Terminator Salvation.
Ciência
Blame! aborda genética em vários momentos ao longo da trama.
Log (capítulo) 2: “Não há variação além dos cromossomos 10 e 11.” … No mundo real, há sempre variação, no mínimo variação suficiente para nos distinguir como indivíduos. Em todos os cromossomos. No caso dessa citação do Log 2, ou os indivíduos são resultado de algum processo de manipulação artificial, ou foi desconhecimento ou simplificação intencional por parte do autor.
Log (capítulo) 4: “Estou procurando os genes de antigamente, que não foram alterados.” … Em um certo momento no mangá é mencionado que houve uma pandemia, que alterou o genoma dos humanos a ponto de eles “perderem” o gene-modem. Isso pode de fato ocorrer no mundo real. Vírus podem infectar seres humanos e alterar o nosso genoma. Cerca de 8% de nosso genoma é composto por material genético de origem viral, resultado de infecções antigas que incorporaram seus retrovírus ao nosso DNA ao longo de milhões de anos. Esses remanescentes virais se tornaram parte do genoma.
Análise dos elementos que constituem a obra
Roteiro: A narrativa é ágil e tem bastante dinamismo. Sendo em grande parte uma narrativa visual, ainda sim consegue ser clara o suficiente ao fazer uso do cenário como condutor da trama em conjunto com o protagonista.
Ilustração: Os traços da arquitetura da cidadã/megaestrutura são belíssimos! Os cenários acabam sendo quase sempre deslumbrantes! O mesmo não pode ser dito dos personagens. Blame! apresenta os traços dos personagens como se fossem sketch (rascunho/arte não finalizada). Isso pode até ter sido um artifício para dar dinamismo (ou seria contraposição a formação como arquiteto do autor?), mas às vezes se torna muito confuso para entender o que está acontecendo em cenas de ação.
As poucas páginas iniciais coloridas nos volumes 2 e 3 têm um aspecto ainda mais forte de rascunho.

Obras relacionadas
Net Sphere Engineer (manga) (?)
NOiSE (manga) (1999, prequela)
Blame! (ONA) (2003, adaptação)
Biomega (manga) (2004)
Prologue of Blame! (OAV) (2007, adaptação)
Blame Academy! And So On (manga) (2008, spin-off)
Blame! (movie) (2017, adaptação) Anime produzido pela Netflix.
BLAME! The Electrofishers’ Escape (manga) (2017, adaptação)
Autor

Tsutomu Nihei nasceu em Fukushima, no Japão, em 1971. É arquiteto de formação e trabalhava em uma construtora antes de criar Blame! Essa influência é nítida e recorrente em sua obra, marcada por grandes, e intrincadamente desenhadas, estruturas.
Recebeu o Seiun Award e o Inkpot Award em 2016.
Outras obras do autor
Abara (manga) (2005 – 2006). Publicado no Brasil pela Panini Comics em 2009.
APOSIMZ (manga) (2017 – 2021).
Biomega (manga) (2004 – 2009).
Blame Academy! And So On (manga) (2008).
Blame! (movie) (2017).
Blame! (ONA) (2003).
BLAME! The Electrofishers’ Escape (manga) (2017).
Digimortal (manga) (2011).
Kaina of the Great Snow Sea (manga) (2022).
Kaina of the Great Snow Sea (TV) (2023).
Kaina of the Great Snow Sea: Star Sage (movie) (2023).
Knights of Sidonia (manga) (2009 – 2015). Publicado no Brasil pela Editora JBC de 2016 a 2018.
Knights of Sidonia (movie) (2015).
Knights of Sidonia (TV) (2014).
Knights of Sidonia: Battle for Planet Nine (TV) (2015).
Net Sphere Engineer (manga) (?)
NOiSE (manga, Tsutomu Nihei) (1999).
NOiSE (NOiSE, prólogo de Blame!) (2000 – 2001).
Prologue of Blame! (OAV) (2007).
Tower Dungeon (manga) (2023 – ). Publicado no Brasil pela Panini desde 2025.
Wolverine – Snikt! (OEL manga) (2004). Publicado no Brasil pela Panini Comics em 2007.
Informações mais detalhadas sobre as obras de Tsutomu Nihei podem ser encontradas em Anime News Network.
Reflexões finais
Blame! é sobre “visual de ficção científica”, megaestrutura, androides, robôs… é tudo isso… mas vai mais fundo do que isso. Blame! aborda evolução humana em um aspecto que pode passar desapercebido em um primeiro momento: descontinuidade cultural. Genética e cultura estão intimamente ligados em nós, Homo sapiens. A nossa espécie evolui através de um processo de coevolução gene-cultura. A trama do mangá de Tsutomu Nihei mostra que houve uma descontinuidade cultural. Em algum momento houve perda de conhecimento. Perda de memória coletiva. Fica evidente que os humanos não sabem mais ler. Isso ocorreu muitas vezes ao longo da evolução da nossa espécie e moldou as relações entre as populações humanas.
Além disso, Blame! aborda a discriminação: “Nós, varredores, eliminaremos todos os residentes ilegais que não possuem o gene-modem.”. Tristemente, a discriminação continua sendo parte da civilização ao redor do globo. Ela pode se dar de várias formas, e o mangá aborda a discriminação genética. Abordada também na ficção por um filme que é usado como exemplo até hoje em aulas de genética: Gattaca (1997).
Blame! então é um mangá que acaba sendo muito mais profundo em sua abordagem da evolução humana do que o mero assombro visual que sua megaestrutura acaba causando inicialmente no leitor. E fica ao menos uma lição importante para nossa sobrevivência como espécie: precisamos estar unidos entre nós e conectados à natureza para sobrevivermos.
A análise apresentada aqui se baseia nos 3 primeiros volumes do mangá.
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